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quinta-feira, 13 de outubro de 2022

 



Abro os olhos, é sábado. Dia de atendimento na Clínica Aberta de Psicanálise. Me desloco. Todos correm, à procura de algo, vivem cada um ao seu modo, a angústia citadina. No caminho, passo por um quartel da polícia militar, observo os cavalos, e meus pensamentos - à galope, movem meu desejo político - de escutar a rua. Os pensamentos resistem à eletricidade do ar e vêm, em busca de uma possível pensadora, em minha direção. 

 No meio do caminho, cruzo a oficina Oswald de Andrade - pessoas circulam, entram, saem. Dançam. Bandeirolas vibram no ar, ali tem movimento, arte, cultura, pulsão, libido, erotismo, desejo. De repente, um sarau. Eu vejo surgir os poetas de campos e espaços. Oswald de Andrade e tua oficina de floresta com teus deuses da chuva. Escuto uma música. Eu continuo andando. Eles me cruzam. O povo mestiço, oprimido nas filas, nas vilas, favelas. Nós nos cruzamos. Retirantes eu - vou até onde o povo está. Meu povo mestiço, o caboclo, o cafuzo e o mameluco. A prostituta que se apaixona, o traficante que se vicia, o pobre que é de direita. O que é humano não me é estranho. Mulheres e homens e suas contradições,  paradoxos e agonias. Hoje é dia de escutá-los. Escutar parada o andarilhos, a indígena do colar de pedra azul, o poeta gandula que vende hot dog no estádio, a moça que teve o teto da sua casa retirado porque não pagou o aluguel, o professor universitário que se encanta pelo método do trabalho, o cineasta argentino. Hoje é dia de me inclinar para o povo da casa.

 Eu, tão singular, já me vi plural.

 Sim, Oswald de Andrade, a nossa independência não foi proclamada. Não, não possuímos autonomia.  Ainda somos escravos de um retrocesso, vivemos em tempos obscuros nessa cidade antropofágica devoradora de sonhos. Estamos achatados nesse açoite neoliberal, precisamos encontrar nossa terceira dimensão. Estamos achatados subjetivamente. Povoemos nossa mente. Ando pela cidade. Um vento bate no meu rosto e faz um movimento centrípeto, trazendo o exterior para dentro de mim. Todo psicanalista é um grupo.

Ando pela cidade, as pessoas passam: trabalham e teimam e limam, e sofrem, e suam. Winnicott diria: "Depois de ser, fazer; também que nos façam alguma coisa. Mas antes de tudo, ser." Ser, cara pálida? Como? Aqui? Onde a vida é mercadoria, se não se faz, pode-se existir? Ser? Tupi or not tupi, eis a questão.

Eu vou em direção à casa do povo. Todo psicanalista se desenvolve na marginalidade, na ruptura, neste jogo de extraterritorialidade. O que seria de uma cidade sem seus territórios marginais? Como não sair de si, dessa normatização da vida contemporânea, chata e idiotizante?

U m d e l í r i o.  

Um homem fumando crack cruza o meu caminho, me dou conta de que me avizinho da Cracolândia. “Já que no céu nada alcanço, recorro às potências do Inferno” é assim que Freud, citando Virgilio, abre a Interpretação dos Sonhos. Olho para este homem nos olhos (poderia eu fazer aberturas e sonhá-lo?)  – compreendo Virgílio e acho que finalmente, Freud. Recorro às potências do inferno. Sinto um estranhamento familiar. Sigo em direção ao povo da casa.

Estou na rua da Casa do Povo, rua Três Rios. Estou na terceira margem - à deriva. Faço da palavra-canoa, meu instrumento e vou, rio abaixo, rio a dentro, escutar as águas da palavra. Já dizia Guimarães Rosa, “cada um rema sozinho uma canoa que navega um rio diferente, mesmo parecendo que esta pertinho”. Eu adicionaria: mas podemos navegar juntos.

Dou de cara com a feia fumaça que sobe tentando apagar o neon, que alumia com seus dizeres “E assim elas comemoram a Vitória”.


“Eu disse: Fecharei os olhos e farei um rabisco a esmo no papel; você o transformará em alguma coisa e depois será sua vez e você fará o mesmo e eu transformarei seu traço em alguma coisa”

Eu fecho os olhos. Estou a esmo. E sou um risco, esperando o encontro com alguém para transformações. Expansões emocionais. Horizontes oníricos ainda não preenchidos, o inédito, a surpresa, o espanto. Pego duas cadeiras, busco um feixe de sol, olho para cima, o céu arranha. Há plantas ao redor, pedras, vidro. Estou na selva de pedra - porque a vida deve estar em algum lugar para ser encontrada.  As pessoas circulam, nós, agora, a sós: eu e a paciente. A céu aberto. Estou sem desejo, sem memória e sem dinheiro. Viva. Pronta para o encontro. Muito viva. Aqui e agora. Na minha frente, um lambe-lambe: 


Fecho os olhos. Chamo a primeira paciente. Ela vem de máscara, é baixa como eu - uma senhora, arrumada, de cabelos alisados e bem cuidados. Senta-se na cadeira, eu abro a porta de vidro, acolho-a delicadamente: “pode-se sentar aqui” digo a ela. Ela olha para mim, vejo seus olhos fixos atrás de seus óculos  como quem pede para que eu estenda a mão. Fica em silêncio. Seus olhos marejam. Eu aguardo, pacientemente. É uma pausa de mil compassos. Um olhar profundo me olha. Registro. Sinto. E me disponho, oca, como um reservatório infinito. Olho-a com atenção, presença e com calma, movo a minha cabeça, como quem diz: Estou aqui. 

Ela me diz: Pois é. Eu guardei este segredo por 18 anos. Eu resisti de vir aqui. Mas eu preciso dividir ele com alguém”.

A voz dessa senhora é abismal. Um rio caudaloso e profundo. Cada palavra, gota a gota, cai dos meus ouvidos como ácido. Ela move as águas dentro de mim, me permito inundar. Me contenho. Ela narra histórias de violações. De humilhações. Ela questiona a própria sanidade e se arruma, se enfeita, pinta as unhas, para parecer, segundo ela, “normal”. A precariedade da vida, uma realidade. A dela, a minha, a sua, a nossa.

Olhamos juntas para essas coisas que se afastam até perder de vista. Havia tanta sanidade ali, tanta lucidez. Eu escuto, testemunho sua dor, escuto as violações e violências: do marido, pelo patriarcado, pelas instituições. Pela pobreza.  A precariedade da vida revela-se de forma crua. Olho para a sanidade dela. Para a dor e a legitimidade de senti-la. Ressôo. Sou a guardiã de suas memórias. Era tudo o que ela precisava ali. Naquele momento. Abraço essa senhora com carinho. 

Enquanto desço as escadas para chamar o próximo paciente, continuo a sonhá-la. Essa senhora habita um espaço em mim. Me consterna, me rasga. Ela nunca pôde ser pensada, penso eu. Gosto dela.  Me dou conta que estou cantarolando:

Eu gosto dos que têm fome

Dos que morrem de vontade

Dos que secam de desejo

Dos que ardem


Me lembro de Macabéa: 

A vida é um soco no estômago.

 

 

 

 

 

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